quinta-feira, 18 de novembro de 2010

♥→ Acabou a Magia


No caminho de volta para casa, tinha aprendido a olhar com outros olhos aquele que tinha sido meu refúgio e minha vida. Embora muitos dissessem que eu havia me transformado num ser de pedra, e que a única coisa que me distinguia de uma rocha eram os olhos, sentia que por dentro crescia. 
Entregue às sombras e ao silêncio, não prestava atenção ao quanto meu coração havia endurecido naqueles dias. Aquele homem era a única pessoa a quem eu tentava esquecer e não conseguia. 
À margem, tinha me acostumado a viver num mundo em que as pessoas e as coisas eram feitas de papel e tinta,  e, por vezes as cheirava como se pudesse sentir o perfume, e, tantas outras, podia tocar no sangue seco das páginas e falava com elas, acreditando que as feridas haviam cicatrizado, e  que ainda pudessem estar vivas.  Nunca saberei se o fiz para evitar que fossem esquecidas, como dizia a mim mesma, ou simplesmente para recordá-las e libertá-las de trás das grades daquelas linhas. O fato é que havia mais sentido nisso que na própria vida. Passei mais tempo nesta escrivanhia do que gostaria de admitir. 
A solidão era tão grande, que cheguei a me trancar num quarto completamente às escuras, sem água nem ventilação, vendo os insetos pararem diante de minha sombra, balançando a cabeça com um gesto hostil de ciência médica, que indicava claramente que não havia expectativas.  
Às vezes permitia que passassem a comida por debaixo da porta, mesmo sabendo que eu a ignoraria. Não saía de casa, não dormia, e, de algum  modo enfraqueci até os dedos perderem a força para tocar na comida. Cheguei a pensar que se desonrasse o livro sagrado, conseguiria sensibilizar a providência divina, e nem que fosse por pena, você  voltaria. 
Embora a pele padecesse de uma palidez doentia,  preferi acreditar que estava tudo bem, e que eu ainda estava na flor da vida, mas bem no fundo, o tempo abria sua miserável torneira de água fria e sentia os anos escorrerem entre meus dedos, e se continuasse assim, em questão de dias eu envelheceria sem consciência nem medida. Uma febre nublou minha vista. 
Olhei para alto e me perguntei por que o céu estava chorando. Ele não foi valente o bastante para me responder que havia acabado a magia.  Senti que a   infância finalmente tinha resolvido  me deixar partir sem nenhuma mágoa ou melancolia.  
Pela primeira vez na vida comecei a aceitar que não poderia mudar o que as pessoas não eram e jamais seriam. Se o fizesse, comprovaria que apesar do que aconteceu, fui capaz de refazer minha vida e, sobretudo, de perdoá-lo.  Hoje  sei que não foi por mal, mas por medo, que você partiu, e, que se pudesse voltar àquele instante, jamais teria me deixado sozinha. Acho que hoje podemos nos olhar como você gostaria. Abri minhas janelas para deixar que se evaporasse com o vento. Entre o canto e outro de um pássaro, dava para vê-lo entre o centeio se movendo. É bonita a maneira como suas mãos roçam no trigo. Centuplicam-no. O tombo foi feio, mas não está mais doendo. 
Esquecer é, de fato, um talento que se aprende com o tempo.




Beijos da Pétala se sentindo como a Pipa

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